Por que cresce assombrosamente o número de pessoas com transtornos mentais e de pacientes tratados com antidepressivos e outros medicamentos psicoativos
Parece
que os americanos estão em meio a uma violenta epidemia de doenças
mentais. A quantidade de pessoas incapacitadas por transtornos mentais, e
com direito a receber a renda de seguridade suplementar ou o seguro por
incapacidade, aumentou quase duas vezes e meia entre 1987 e 2007 – de 1
em cada 184 americanos passou para 1 em 76.
No que se refere às crianças, o número é ainda mais espantoso: um
aumento de 35 vezes nas mesmas duas décadas. A doença mental é hoje a
principal causa de incapacitação de crianças, bem à frente de
deficiências físicas como a paralisia cerebral ou a síndrome de Down.
Um grande estudo de adultos (selecionados aleatoriamente), patrocinado
pelo Instituto Nacional de Saúde Mental, realizado entre 2001 e 2003,
descobriu que um percentual assombroso de 46% se encaixava nos critérios
estabelecidos pela Associação Americana de Psiquiatria, por ter tido em
algum momento de suas vidas pelo menos uma doença mental, entre quatro
categorias.
As categorias seriam “transtornos de ansiedade”, que incluem fobias e
estresse pós-traumático; “transtornos de humor”, como depressão e
transtorno bipolar; “transtornos de controle dos impulsos”, que abrangem
problemas de comportamento e de déficit de atenção/hiperatividade; e
“transtornos causados pelo uso de substâncias”, como o abuso de álcool e
drogas. A maioria dos pesquisados se encaixava em mais de um
diagnóstico.
O tratamento médico desses transtornos quase sempre implica o uso de
drogas psicoativas, os medicamentos que afetam o estado mental.Na
verdade, a maioria dos psiquiatras usa apenas remédios no tratamento e
encaminha os pacientes para psicólogos ou terapeutas se acha que uma
psicoterapia é igualmente necessária.
A substituição da “terapia de conversa” pela das drogas como tratamento
majoritário coincide com o surgimento, nas últimas quatro décadas, da
teoria de que as doenças mentais são causadas por desequilíbrios
químicos no cérebro, que podem ser corrigidos pelo uso de medicamentos.
Essa teoria passou a ser amplamente aceita pela mídia e pelo público,
bem como pelos médicos, depois que o Prozac chegou ao mercado, em 1987, e
foi intensamente divulgado como um corretivo para a deficiência de
serotonina no cérebro.
O número de pessoas depressivas tratadas triplicou nos dez anos
seguintes e, hoje, cerca de 10% dos americanos com mais de 6 anos de
idade tomam antidepressivos. O aumento do uso de drogas para tratar a
psicose é ainda mais impressionante. A nova geração de antipsicóticos,
como o Risperdal, o Zyprexa e o Seroquel, ultrapassou os redutores do
colesterol no topo da lista de remédios mais vendidos nos Estados
Unidos.
O que
está acontecendo? A preponderância das doenças mentais sobre as físicas
é de fato tão alta, e continua a crescer? Se os transtornos mentais são
biologicamente determinados e não um produto de influências ambientais,
é plausível supor que o seu crescimento seja real? Ou será que estamos
aprendendo a diagnosticar transtornos mentais que sempre existiram? Ou,
por outro lado, será que simplesmente ampliamos os critérios para
definir as doenças mentais, de modo que quase todo mundo agora sofre de
uma delas? E o que dizer dos medicamentos que viraram a base dos
tratamentos? Eles funcionam? E, se funcionam, não deveríamos esperar que
o número de doentes mentais estivesse em declínio e não em ascensão?
Essas são as questões que preocupam os autores de três livros
provocativos, aqui analisados. Eles vêm de diferentes formações: Irving
Kirsch é psicólogo da Universidade de Hull, no Reino Unido; Robert
Whitaker é jornalista; e Daniel Carlat é um psiquiatra que clinica num
subúrbio de Boston.
Os autores enfatizam diferentes aspectos da epidemia de doença mental.
Kirsch está preocupado em saber se os antidepressivos funcionam.
Whitaker pergunta se as drogas psicoativas não criam problemas piores do
que aqueles que resolvem. Carlat examina como a sua profissão se aliou à
indústria farmacêutica e é manipulada por ela. Mas, apesar de suas
diferenças, os três estão de acordo sobre algumas questões importantes.
Em primeiro lugar, concordam que é preocupante a extensão com a qual as
empresas que vendem drogas psicoativas – por meio de várias formas de
marketing, tanto legal como ilegal, e usando o que muita gente chamaria
de suborno – passaram a determinar o que constitui uma doença mental e
como os distúrbios devem ser diagnosticados e tratados.
Em segundo lugar, nenhum dos três aceita a teoria de que a doença mental
é provocada por um desequilíbrio químico no cérebro. Whitaker conta que
essa teoria surgiu pouco depois que os remédios psicotrópicos foram
introduzidos no mercado, na década de 50. O primeiro foi o Amplictil
(clorpromazina), lançado em 1954, que rapidamente passou a ser muito
usado em hospitais psiquiátricos, para acalmar pacientes psicóticos,
sobretudo os com esquizofrenia. No ano seguinte, chegou o Miltown
(meprobamato), vendido para tratar a ansiedade em pacientes
ambulatoriais. Em 1957, o Marsilid (iproniazid) entrou no mercado como
um “energizador psíquico” para tratar a depressão.
Desse modo, no curto espaço de três anos, tornaram-se disponíveis
medicamentos para tratar aquelas que, na época, eram consideradas as
três principais categorias de doença mental – ansiedade, psicose e
depressão – e a psiquiatria transformou-se totalmente. Essas drogas, no
entanto, não haviam sido desenvolvidas para tratar doenças mentais. Elas
foram derivadas de remédios destinados ao combate de infecções, e se
descobriu por acaso que alteravam o estado mental.
No início, ninguém tinha ideia de como funcionavam. Elas simplesmente
embotavam sintomas mentais perturbadores. Durante a década seguinte,
pesquisadores descobriram que essas drogas afetavam os níveis de certas
substâncias químicas no cérebro.
Um
pouco de pano de fundo, e necessariamente muito simplificado: o cérebro
contém bilhões de células nervosas, os neurônios, distribuídos em redes
complexas, que se comunicam uns com os outros constantemente.
O neurônio típico tem múltiplas extensões filamentosas (uma chamada
axônio e as outras chamadas dendritos), por meio das quais ele envia e
recebe sinais de outros neurônios. Para um neurônio se comunicar com
outro, no entanto, o sinal deve ser transmitido através do minúsculo
espaço que os separa, a sinapse. Para conseguir isso, o axônio do
neurônio libera na sinapse uma substância química chamada
neurotransmissor.
O neurotransmissor atravessa a sinapse e liga-se a receptores no segundo
neurônio, muitas vezes um dendrito, ativando ou inibindo a célula
receptora. Os axônios têm vários terminais e, desse modo, cada neurônio
tem múltiplas sinapses. Depois, o neurotransmissor é reabsorvido pelo
primeiro neurônio ou metabolizado pelas enzimas, de tal modo que o status quo anterior é restaurado.
Quando
se descobriu que as drogas psicoativas afetam os níveis de
neurotransmissores, surgiu a teoria de que a causa da doença mental é
uma anormalidade na concentração cerebral desses elementos químicos, a
qual é combatida pelo medicamento apropriado.
Por exemplo: como o Thorazine diminui os níveis de dopamina no cérebro, postulou-se que psicoses como a esquizofrenia são causadas por excesso de dopamina. Ou então: tendo em vista que alguns antidepressivos aumentam os níveis do neurotransmissor chamado serotonina, defendeu-se que a depressão é causada pela escassez de serotonina. Antidepressivos como o Prozac ou o Celexa impedem a reabsorção de serotonina pelos neurônios que a liberam, e assim ela permanece mais nas sinapses e ativa outros neurônios. Desse modo, em vez de desenvolver um medicamento para tratar uma anormalidade, uma anormalidade foi postulada para se adequar a um medicamento.
Trata-se de uma grande pirueta lógica, como apontam os três autores. Era
perfeitamente possível que as drogas que afetam os níveis dos
neurotransmissores pudessem aliviar os sintomas, mesmo que os
neurotransmissores não tivessem nada a ver com a doença. Como escreve
Carlat: “Por essa mesma lógica, se poderia argumentar que a causa de
todos os estados de dor é uma deficiência de opiáceos, uma vez que
analgésicos narcóticos ativam os receptores de opiáceos do cérebro.” Ou,
do mesmo modo, se poderia dizer que as febres são causadas pela
escassez de aspirina.
Mas o principal problema com essa teoria é que, após décadas tentando
prová-la, os pesquisadores ainda estão de mãos vazias. Os três autores
documentam o fracasso dos cientistas para encontrar boas provas a seu
favor. Antes do tratamento, a função dos neurotransmissores parece ser
normal nas pessoas com doença mental. Nas palavras de Whitaker:
Antes do tratamento, os pacientes diagnosticados com depressão,
esquizofrenia e outros transtornos psiquiátricos não sofrem nenhum
“desequilíbrio químico”. No entanto, depois que uma pessoa passa a tomar
medicação psiquiátrica, que perturba a mecânica normal de uma via
neuronal, seu cérebro começa a funcionar... anormalmente.
Carlat refere-se à teoria do desequilíbrio químico como um “mito” (que
ele chama de “conveniente” porque reduziria o estigma da doença mental).
E Kirsch,cujo livro centra-se na depressão, resume a questão assim:
“Parece fora de dúvida que o conceito tradicional de considerar a
depressão como um desequilíbrio químico no cérebro está simplesmente
errado.” (O motivo da persistência dessa teoria, apesar da falta de
provas, é um tema que tratarei adiante.)
Os remédios funcionam? Afinal de contas, independentemente da teoria,
essa é a questão prática. Em seu livro seco e extremamente cativante, The Emperor’s New Drugs [As Novas Drogas do Imperador],
Kirsch descreve os seus quinze anos de pesquisa científica para
responder a essa pergunta, no que diz respeito aos antidepressivos.
Quando começou o trabalho em 1995, seu principal interesse eram os
efeitos de placebos. Para estudá-los, ele e um colega revisaram 38
ensaios clínicos que comparavam vários tratamentos da depressão com
placebos, ou comparavam a psicoterapia com nenhum tratamento. A maioria
dessas experiências durava de seis a oito semanas, e durante esse
período os pacientes tendiam a melhorar um pouco, mesmo se não tivessem
nenhum tratamento.
Mas Kirsch descobriu que os placebos eram três vezes mais eficazes do
que a ausência de tratamento. Isso não o surpreendeu. O que o
surpreendeu mesmo foi que os antidepressivos foram apenas marginalmente
mais úteis do que os placebos: 75% dos placebos foram tão eficazes
quanto os antidepressivos. Kirsch resolveu então repetir o estudo, dessa
vez com a análise de um conjunto de dados mais completo e padronizado.
Os dados que ele usou foram obtidos da Food and Drug Administration, a FDA [o órgão público americano encarregado do licenciamento e controle de medicamentos].
Quando buscam a aprovação da FDA para comercializar um novo remédio, os
laboratórios farmacêuticos devem apresentar à agência todos os testes
clínicos que patrocinaram. Os testes são geralmente duplo-cego e
controlados com placebo. Ou seja: os pacientes participantes recebem
aleatoriamente a droga ou o placebo, e nem eles nem os seus médicos
sabem o que receberam.
Os pacientes são informados de que receberão ou um medicamento ativo ou
um placebo. E também são avisados dos efeitos colaterais que podem
ocorrer. Se dois testes comprovam que o medicamento é mais eficaz do que
o placebo, ele é geralmente aprovado. Mas os laboratórios podem
patrocinar quantos testes quiserem, e a maioria deles pode dar negativo –
isto é, não mostrar a eficácia do remédio. Tudo o que eles precisam é
de dois testes com resultados positivos. (Os resultados dos testes de um
mesmo medicamento podem variar por muitas razões, entre elas a forma
como o ensaio foi concebido e realizado, seu tamanho e os tipos de
pacientes pesquisados.)
Por razões óbvias, as indústrias farmacêuticas fazem questão de que seus
testes positivos sejam publicados em revistas médicas, e os médicos
fiquem sabendo deles. Já os testes negativos ficam nas gavetas da FDA,
que os considera propriedade privada e, portanto, confidenciais. Essa
prática distorce a literatura médica, o ensino da medicina e as decisões
de tratamento.
kirsch
e seus colegas usaram a Lei de Liberdade de Informação para obter as
revisões da FDA de todos os testes clínicos controlados por placebo,
positivos ou negativos, submetidos para a aprovação dos seis
antidepressivos mais utilizados, aprovados entre 1987 e 1999: Prozac,
Paxil, Zoloft, Celexa, Serzone e Effexor.
Ao todo, havia 42 testes das seis drogas. A maioria deles era negativo.
No total, os placebos eram 82% tão eficazes quanto os medicamentos, tal
como medido pela Escala de Depressão de Hamilton, uma classificação dos
sintomas de depressão amplamente utilizada. A diferença média entre
remédio e placebo era de apenas 1,8 ponto na Escala, uma diferença que,
embora estatisticamente significativa, era insignificante do ponto de
vista clínico. Os resultados foram quase os mesmos para as seis drogas:
todos igualmente inexpressivos. No entanto, como os estudos positivos
foram amplamente divulgados, enquanto os negativos eram escondidos, o
público e os médicos passaram a acreditar que esses medicamentos
antidepressivos eram altamente eficazes.
Kirsch ficou impressionado com outro achado inesperado. Em seu estudo
anterior, e em trabalhos de outros, observara que até mesmo tratamentos
com substâncias que não eram consideradas antidepressivas – como
hormônio sintético da tireoide, opiáceos, sedativos, estimulantes e
algumas ervas medicinais – eram tão eficazes quanto os antidepressivos
para aliviar os sintomas da depressão. Kirsch escreve: “Quando
administrados como antidepressivos, remédios que aumentam, diminuem ou
não têm nenhuma influência sobre a serotonina aliviam a depressão mais
ou menos no mesmo grau.”
O que todos esses medicamentos “eficazes” tinham em comum era que
produziam efeitos colaterais, sobre os quais os pacientes participantes
haviam sido informados de que poderiam ocorrer.
Diante da descoberta de que quase qualquer comprimido com efeitos
colaterais era ligeiramente mais eficaz no tratamento da depressão do
que um placebo, Kirsch especulou que a presença de efeitos colaterais em
indivíduos que recebem medicamentos lhes permitia adivinhar que
recebiam tratamento ativo – e isso foi corroborado por entrevistas com
pacientes e médicos –, o que os tornava mais propensos a relatar uma
melhora. Ele sugere que a razão pela qual os antidepressivos parecem
funcionar melhor no alívio de depressão grave do que em casos menos
graves é que os pacientes com sintomas graves provavelmente tomam doses
mais elevadas e, portanto, sofrem mais efeitos colaterais.
Para
investigar melhor se os efeitos colaterais distorciam as respostas,
Kirsch analisou alguns ensaios que utilizaram placebos “ativos”, em vez
de inertes. Um placebo ativo é aquele que produz efeitos colaterais,
como a atropina – droga que bloqueia a ação de certos tipos de fibras
nervosas. Apesar de não ser um antidepressivo, a atropina causa, entre
outras coisas, secura da boca. Em testes utilizando atropina como
placebo, não houve diferença entre os antidepressivos e o placebo ativo.
Todos tinham efeitos colaterais, e todos relataram o mesmo nível de
melhora.
Kirsch registrou outras descobertas estranhas em testes clínicos de
antidepressivos, entre elas o fato de que não há nenhuma curva de
dose-resposta, ou seja, altas doses não funcionavam melhor do que as
baixas, o que é extremamente improvável para medicamentos eficazes.
“Ao se juntar tudo isso”, escreve Kirsch,“chega-se à conclusão de que a
diferença relativamente pequena entre medicamentos e placebos pode não
ser um efeito verdadeiro do remédio. Em vez disso, pode ser um efeito
placebo acentuado, produzido pelo fato de que alguns pacientes passaram a
perceber que recebiam medicamentos ou placebos. Se este for o caso,
então não há nenhum efeito antidepressivo dos medicamentos. Em vez de
compararmos placebo com remédio, estávamos comparando placebos ‘normais’
com placebos ‘extrafortes’.”
Trata-se de uma conclusão surpreendente, que desafia a opinião médica,
mas Kirsch chega a ela de uma forma cuidadosa e lógica. Psiquiatras que
usam antidepressivos – e isso significa a maioria deles – e pacientes
que os tomam talvez insistam que sabem por experiência clínica que os
medicamentos funcionam.
Mas casos individuais são uma forma traiçoeira de avaliar tratamentos
médicos, pois estão sujeitos a distorções. Eles podem sugerir hipóteses a
serem estudadas, mas não podem prová-las. É por isso que o
desenvolvimento do teste clínico duplo-cego, aleatório e controlado com
placebo, foi um avanço tão importante na ciência médica, em meados do
século passado. Histórias sobre sanguessugas, megadoses de vitamina cou
vários outros tratamentos populares não suportariam o escrutínio de
testes bem planejados. Kirsch é um defensor devotado do método
científico e sua voz, portanto, traz objetividade a um tema muitas vezes
influenciado por subjetividade, emoções ou, como veremos, interesse
pessoal.
O livro de Whitaker, Anatomy of an Epidemic [Anatomia de uma Epidemia],
é mais amplo e polêmico. Ele leva em conta todas as doenças mentais,
não apenas a depressão. EnquantoKirsch conclui que os antidepressivos
não são provavelmente mais eficazes do que placebos, Whitaker conclui
que eles e a maioria das drogas psicoativas não são apenas ineficazes,
mas prejudiciais. Whitaker começa por observar que, se o tratamento de
doenças mentais por meio de medicamentos disparou, o mesmo aconteceu com
as patologias tratadas:
O número de doentes mentais incapacitados aumentou imensamente desde
1955 e durante as duas últimas décadas, período em que a prescrição de
medicamentos psiquiátricos explodiu e o número de adultos e crianças
incapacitados por doença mental aumentou numa taxa alucinante. Assim,
chegamos a uma pergunta óbvia, embora herética: o paradigma de
tratamento baseado em drogas poderia estar alimentando, de alguma
maneira imprevista, essa praga dos tempos modernos?
Além disso, Whitaker sustenta que a história natural da doença mental
mudou. Enquanto transtornos como esquizofrenia e depressão eram outrora
episódicos, e cada episódio durava não mais de seis meses, sendo
intercalado por longos períodos de normalidade, os distúrbios agora são
crônicos e duram a vida inteira. Whitaker acredita que isso talvez
aconteça porque os medicamentos, mesmo aqueles que aliviam os sintomas
em curto prazo, causam em longo prazo danos mentais que continuam depois
que a doença teria naturalmente se resolvido.
As provas que ele apresenta para essa teoria variam em qualidade.
Whitaker não reconhece suficientemente a dificuldade de estudar a
história natural de qualquer doença durante um período de cinquenta
anos, no qual muitas circunstâncias mudaram, além do uso de
medicamentos. É ainda mais difícil comparar resultados de longo prazo de
pacientes tratados e não tratados. No entanto, os indícios de Whitaker
são sugestivos, se não conclusivos.
E e
as drogas psicoativas causam danos, como afirma Whitaker, qual é o seu
mecanismo? A resposta, ele acredita, encontra-se em seus efeitos sobre
os neurotransmissores. É bem sabido que as drogas psicoativas perturbam
os neurotransmissores, mesmo que essa não seja a causa primeira da
doença.
Whitaker descreve uma cadeia de efeitos. Quando, por exemplo, um
antidepressivo como o Celexa aumenta os níveis de serotonina nas
sinapses, ele estimula mudanças compensatórias por meio de um processo
chamado feedback negativo. Em reação aos altos níveis de
serotonina, os neurônios que a secretam liberam menos dela, e os
neurônios pós-sinápticos tornam-se insensíveis a ela. Na verdade, o
cérebro está tentando anular os efeitos da droga. O mesmo vale para os
medicamentos que bloqueiam neurotransmissores, exceto no sentido
inverso.
A maioria dos antipsicóticos, por exemplo, bloqueia a dopamina, mas os
neurônios pré-sinápticos compensam isso liberando mais dopamina, e os
neurônios pós-sinápticos a aceitam com mais avidez.
As consequências do uso prolongado de drogas psicoativas, nas palavras
de Steve Hyman, até recentemente reitor da Universidade de Harvard, são
“alterações substanciais e de longa duração na função neural”.
Depois de várias semanas de drogas psicoativas, os esforços de
compensação do cérebro começam a falhar e surgem efeitos colaterais que
refletem o mecanismo de ação dos medicamentos. Antipsicóticos causam
efeitos secundários que se assemelham ao mal de Parkinson, por causa do
esgotamento de dopamina (que também se esgota no Parkinson). À medida
que surgem efeitos colaterais, eles são tratados por outros
medicamentos, e muitos pacientes acabam tomando um coquetel de drogas
psicoativas, prescrito para um coquetel de diagnósticos. Os episódios de
mania causada por antidepressivos podem levar a um novo diagnóstico de
“transtorno bipolar” e ao tratamento com um “estabilizador de humor”,
como Depokote (anticonvulsivo), acompanhado de uma das novas drogas
antipsicóticas. E assim por diante.
A respeitada pesquisadora Nancy Andreasen e seus colegas publicaram
indícios de que o uso de antipsicóticos está associado ao encolhimento
do cérebro, e que o efeito está diretamente relacionado à dose e à
duração do tratamento. Como Andreasen explicou ao New York Times:
“O córtex pré-frontal não obtém o que precisa e vai sendo fechado pelos
medicamentos. Isso reduz os sintomas psicóticos. E faz também com que o
córtex pré-frontal se atrofie lentamente.”
Largar os remédios é extremamente difícil, segundo Whitaker, porque
quando eles são retirados, os mecanismos compensatórios ficam sem
oposição. Quando se retira o Celexa, os níveis de serotonina caem
bruscamente porque os neurônios pré-sinápticos não estão liberando
quantidades normais. Da mesma forma, quando se suspende um
antipsicótico, os níveis de dopamina podem disparar.Os sintomas
produzidos pela retirada de drogas psicoativas são confundidos com
recaídas da doença original, o que pode levar psiquiatras a retomar o
tratamento com remédios, talvez em doses mais elevadas.
Whitaker está indignado com o que considera uma epidemia iatrogênica
(isto é, introduzida inadvertidamente pelos médicos) de disfunção
cerebral, especialmente a causada pelo uso generalizado dos novos
antipsicóticos, como o Zyprexa, que provoca graves efeitos colaterais.
Eis o que ele chama de “experimento de pensamento rápido”:
Imagine que aparece de repente um vírus que faz com que as pessoas
durmam doze, catorze horas por dia. As pessoas infectadas se movimentam
devagar e parecem emocionalmente desligadas. Muitas ganham quantidades
imensas de peso – 10, 20 e até 50 quilos. Os seus níveis de açúcar no
sangue disparam, assim como os de colesterol.
Vários dos atingidos pela doença misteriosa – entre eles, crianças e
adolescentes – se tornam diabéticos. O governo federal dá centenas de
milhões de dólares aos cientistas para decifrar o funcionamento do
vírus, e eles relatam que ele bloqueia uma multidão de receptores no
cérebro. Enquanto isso, exames de ressonância magnética descobrem que,
ao longo de vários anos, o vírus encolhe o córtex cerebral, e esta
diminuição está ligada ao declínio cognitivo. O público aterrorizado
clama por uma cura.
Ora, essa doença está, de fato, atingindo milhões de crianças e
adultos. Acabamos de descrever os efeitos do antipsicótico Zyprexa, um
dos mais vendidos do laboratório Eli Lilly.
Leon
Eisenberg, professor da Universidade Johns Hopkins e da Escola de
Medicina de Harvard, escreveu que a psiquiatria americana passou,no
final do século XX, de uma fase “descerebrada” para uma
“desmentalizada”. Ele quis dizer que, antes das drogas psicoativas, os
psiquiatras tinham pouco interesse por neurotransmissores ou outros
aspectos físicos do cérebro. Em vez disso, aceitavam a visão freudiana
de que a doença mental tinha suas raízes em conflitos inconscientes,
geralmente com origem na infância, que afetavam a mente como se ela
fosse separada do cérebro.
Com
a entrada em cena dessas drogas, na década de 50 – processo que se
acelerou na década de 80 –, o foco mudou para o cérebro. Os psiquiatras
começaram a se referir a si mesmos como psicofarmacologistas, e se
interessaram cada vez menos pelas histórias de vida dos pacientes.
A preocupação deles era eliminar ou reduzir os sintomas, tratando os
pacientes com medicamentos que alterariam a função cerebral. Tendo sido
um dos primeiros defensores do modelo biológico de doença mental,
Eisenberg veio a se tornar um crítico do uso indiscriminado de drogas
psicoativas, impulsionado pelas maquinações da indústria farmacêutica.
Quando as drogas psicoativas surgiram, houve um período de otimismo na
profissão psiquiátrica, mas na década de 70 o otimismo deu lugar a uma
sensação de ameaça. Ficaram claros os graves efeitos colaterais dos
medicamentos e um movimento de antipsiquiatria lançou raízes, como
exemplificam os escritos de Thomas Szasz e o filme Um Estranho no Ninho.
Havia também a concorrência crescente de psicólogos e terapeutas. Além
disso, os psiquiatras sofreram divisões internas: alguns abraçaram o
modelo biológico, outros se agarraram ao modelo freudiano, e uns poucos
viam a doença mental como uma resposta sadia a um mundo insano. Ademais,
dentro da medicina, os psiquiatras eram considerados uma espécie de
parentes pobres: mesmo com suas novas drogas, eram vistos como menos
científicos do que os outros especialistas, e sua renda era geralmente
mais baixa.
No final da década de 70, os psiquiatras contra-atacaram, e com força. Como conta Robert Whitaker em Anatomy of an Epidemic,
o diretor médico da Associação Americana de Psiquiatria, Melvin
Sabshin, declarou, em 1977: “Devemos apoiar fortemente um esforço
vigoroso para remedicalizar a psiquiatria.” E lançou uma campanha maciça
de relações públicas para fazer exatamente isso.
A psiquiatria detinha uma arma poderosa, que seus concorrentes não
podiam ter. Como cursaram medicina, os psiquiatras têm autoridade legal
para escrever receitas. Ao abraçar o modelo biológico de doença mental, e
o uso de drogas psicoativas para tratá-la, a psiquiatria conseguiu
relegar os outros prestadores de serviços de saúde mental para cargos
secundários. E se apresentou também como uma disciplina científica. E, o
que é mais importante, ao enfatizar o tratamento medicamentoso, a
psiquiatria tornou-se a queridinha da indústria farmacêutica, que logo
tornou tangível sua gratidão.
A Associação Americana de Psiquiatria, a APA, estava preparando então a terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais,
o DSM, que estabelece os critérios de diagnóstico para todos os
transtornos mentais. O presidente da Associação havia indicado Robert
Spitzer, eminente professor de psiquiatria da Universidade de Columbia,
para chefiar a força-tarefa que supervisionaria o Manual.
As duas primeiras edições, publicadas em 1952 e 1968, refletiam a visão
freudiana da doença mental, e eram pouco conhecidas fora da profissão.
Spitzer decidiu fazer da terceira edição, o DSM-III, algo bem diferente.
Ele prometeu que o Manual seria “uma defesa do modelo médico aplicado a
problemas psiquiátricos”, e o presidente da Associação, Jack Weinberg,
disse que ele “deixaria claro para quem tivesse dúvidas que consideramos
a psiquiatria uma especialidade da medicina”.
Quando foi publicado, em 1980, o DSM-III continha 265 diagnósticos
(acima dos 182 da edição anterior) e logo teve um uso quase universal:
não apenas por parte de psiquiatras, mas também por companhias de
seguros, hospitais, tribunais, prisões, escolas, pesquisadores, agências
governamentais e médicos de todas as especialidades. Seu principal
objetivo era trazer coerência (normalmente chamada de “confiabilidade”)
ao diagnóstico psiquiátrico. Ou seja, garantir que os psiquiatras que
viam o mesmo paciente concordassem com o diagnóstico. Para isso, cada
diagnóstico era definido por uma lista de sintomas, com limites
numéricos. Por exemplo, ter pelo menos cinco de nove sintomas
determinados garantia ao paciente um diagnóstico definitivo de episódio
depressivo dentro da ampla categoria de “transtornos do humor”.
Mas havia outro objetivo: justificar o uso de drogas psicoativas. Com
efeito, Carol Bernstein, a presidente da apa, reconheceu isso ao
escrever: “Na década de 70, foi preciso facilitar um acordo sobre
diagnósticos entre clínicos, cientistas e autoridades reguladoras, dada a
necessidade de ligar os pacientes aos novos tratamentos
farmacológicos.”
A terceira edição do Manual era talvez mais “confiável” do que as
versões anteriores, mas confiabilidade não é a mesma coisa que validade.
O termo confiabilidade é usado como sinônimo de “coerência”; validade
refere-se à correção ou solidez. Se todos os médicos concordassem que as
sardas são um sinal de câncer, o diagnóstico seria “confiável”, mas não
válido.
O problema com o Manual é que, em todas as suas edições, ele
simplesmente refletia as opiniões de seus autores. E, no caso do
DSM-III, sobretudo as opiniões do próprio Spitzer, que foi apontado com
justiça como um dos psiquiatras mais influentes do século xx. Em suas
palavras, ele “pegou todo mundo com quem se sentia à vontade” para
participar da força-tarefa de quinze membros, e houve queixas de que ele
convocou poucas reuniões e conduziu o processo de uma maneira
desordenada, mas ditatorial.
Num artigo de 1984 intitulado “As desvantagens do DSM-III superam suas
vantagens”, George Vaillant, professor de psiquiatria de Harvard,
afirmou que o DSM-III representou “uma audaciosa série de escolhas
baseadas em palpite, gosto, preconceito e esperança”, o que parece ser
uma boa descrição.
O DSM se tornou a bíblia da psiquiatria e, tal como a Bíblia cristã,
dependia muito de algo parecido com a fé: não há nele citações de
estudos científicos para sustentar suas decisões. É uma omissão
espantosa, porque em todas as publicações médicas, sejam revistas ou
livros didáticos, as declarações de fatos devem estar apoiadas em
referências comprováveis. (Há quatro “livros de consulta” separados para
a edição atual do DSM, que apresentam a razão para algumas decisões,
junto com referências, mas isso não é a mesma coisa que referências
específicas.)
Pode ser de muito interesse para um grupo de especialistas se reunir e
dar suas opiniões, mas a menos que essas opiniões possam ser sustentadas
por provas, elas não autorizam a deferência extraordinária dedicada ao
DSM. “A cada edição subsequente”, escreve Daniel Carlat, “o número de
categorias de diagnósticos se multiplicava, e os livros se tornaram
maiores e mais caros. Cada um deles se tornou um best-seller, e o DSM é
hoje uma das principais fontes de renda da Associação Americana de
Psiquiatria.” O Manual atual, o DSM-IV, vendeu mais de 1 milhão de
exemplares.
Os laboratórios farmacêuticos passaram a dar toda a atenção e
generosidade aos psiquiatras, tanto individual como coletivamente,
direta e indiretamente. Choveram presentes e amostras grátis, contratos
de consultores e palestrantes, refeições, ajuda para participar de
conferências. Quando os estados de Minnesota e Vermont implantaram “leis
de transparência”, que exigem que os laboratórios informem todos os
pagamentos a médicos, descobriu-se que os psiquiatras recebiam mais
dinheiro do que os médicos de qualquer outra especialidade. A indústria
farmacêutica também subsidia as reuniões da APA e outras conferências
psiquiátricas. Cerca de um quinto do financiamento da APA vem agora da
indústria farmacêutica.
Os laboratórios buscam conquistar psiquiatras de centros médicos
universitários de prestígio. Chamados pela indústria de “líderes-chave
de opinião”, eles são os profissionais que, por meio do que escrevem e
ensinam, influenciam o tratamento das doenças mentais. Eles também
publicam grande parte da pesquisa clínica sobre medicamentos e, o que é
fundamental, determinam o conteúdo do DSM. Em certo sentido, eles são a
melhor equipe de vendas que a indústria poderia ter e valem cada centavo
gasto com eles. Dos 170 colaboradores da versão atual do DSM, dos quais
quase todos poderiam ser descritos como líderes-chave, 95 tinham
vínculos financeiros com laboratórios farmacêuticos, inclusive todos os
colaboradores das seções sobre transtornos de humor e esquizofrenia.
Carlat pergunta: “Por que os psiquiatras estão na frente de todos os
outros especialistas quando se trata de tomar dinheiro de laboratórios?”
Sua resposta: “Nossos diagnósticos são subjetivos e expansíveis, e
temos poucas razões racionais para a escolha de um tratamento em relação
a outro.” Ao contrário das enfermidades tratadas pela maioria dos
outros ramos da medicina, não há sinais ou exames objetivos para as
doenças mentais – nenhum dado de laboratório ou descoberta por
ressonância magnética – e as fronteiras entre o normal e o anormal são
muitas vezes pouco claras. Isso torna possível expandir as fronteiras do
diagnóstico ou até mesmo criar novas diagnoses, de uma forma que seria
impossível, por exemplo, em um campo como a cardiologia. E as empresas
farmacêuticas têm todo o interesse em induzir os psiquiatras a fazer
exatamente isso.
Além do dinheiro gasto com os psiquiatras, os laboratórios apoiam muitos
grupos de defesa de pacientes e organizações educacionais. Whitaker
informa que, somente no primeiro trimestre de 2009, o “Eli Lilly deu 551
mil dólares à Aliança Nacional para Doenças Mentais, 465 mil dólares
para a Associação Nacional de Saúde Mental, 130 mil dólares para um
grupo de defesa dos pacientes de déficit de atenção/hiperatividade, e 69
250 dólares para a Fundação Americana de Prevenção ao Suicídio”.
E isso foi o que apenas um laboratório gastou em três meses; pode-se
imaginar qual deve ser o total anual de todas as empresas que produzem
drogas psicoativas. Esses grupos aparentemente existem para
conscientizar a opinião pública sobre transtornos psiquiátricos, mas
também têm o efeito de promover o uso de drogas psicoativas e
influenciar os planos de saúde para cobri-los.
Como
a maioria dos psiquiatras, Carlat trata seus pacientes apenas com
medicamentos, sem terapia de conversa, e é sincero a respeito das
vantagens de fazer isso. Ele calcula que, se atender três pacientes por
hora com psicofarmacologia, ganha cerca de 180 dólares por hora dos
planos de saúde. Em contrapartida, poderia atender apenas um paciente
por hora com terapia de conversa, pela qual os planos lhe pagariam menos
de 100 dólares. Carlat não acredita que a psicofarmacologia seja
particularmente complicada, muito menos precisa, embora o público seja
levado a acreditar que é.
Seu trabalho consiste em fazer aos pacientes uma série de perguntas
sobre seus sintomas, para ver se eles combinam com algum dos transtornos
catalogados no DSM. Esse exercício de correspondência, diz ele,
propicia “a ilusão de que compreendemos os nossos pacientes, quando tudo
o que estamos fazendo é atribuir-lhes rótulos”. Muitas vezes os
pacientes preenchem critérios para mais de um diagnóstico, porque há
sobreposição de sintomas.
Um dos pacientes de Carlat acabou com sete diagnósticos distintos. “Nós
miramos sintomas distintos com os tratamentos, e outros medicamentos são
adicionados para tratar os efeitos colaterais.” Um paciente típico, diz
ele, pode estar tomando Celexa para depressão, Ativan para ansiedade,
Ambien para insônia, Provigil para fadiga (um efeito colateral do
Celexa) e Viagra para impotência (outro efeito colateral do Celexa).
Quanto aos próprios medicamentos, Carlat escreve que “há apenas um
punhado de categorias guarda-chuva de drogas psicotrópicas”, sob as
quais os medicamentos não são muito diferentes uns dos outros. Ele não
acredita que exista muita base para escolher entre eles. E resume:
Assim é a moderna psicofarmacologia. Guiados apenas por sintomas,
tentamos diferentes medicamentos, sem nenhuma concepção verdadeira do
que estamos tentando corrigir, ou de como as drogas estão funcionando.
Espanto-me que sejamos tão eficazes para tantos pacientes.
Carlat passa então a especular, como Kirsch em The Emperor’s New Drugs,
que os pacientes talvez estejam respondendo a um efeito placebo
ativado. Se as drogas psicoativas não são tudo o que é alardeado – e os
indícios indicam que não são –, o que acontece com os próprios
diagnósticos? Como eles se multiplicam a cada edição do DSM?
Em
1999, a APA começou a trabalhar em sua quinta revisão do DSM,
programado para ser publicado em 2013. A força-tarefa de 27 membros é
chefiada por David Kupfer, professor de psiquiatria da Universidade de
Pittsburgh. Tal como nas edições anteriores, a força-tarefa é
assessorada por vários grupos de trabalho, que agora totalizam cercade
140 membros, correspondentes às categorias principais de diagnóstico.
As deliberações e propostas em curso foram amplamente divulgadas, e
parece que a constelação de transtornos mentais vai crescer ainda mais.
Em particular, os limites dos diagnósticos serão ampliados para incluir
os precursores dos transtornos, tais como “síndrome do risco de psicose”
e “transtorno cognitivo leve” (possível início do mal de Alzheimer). O
termo “espectro” é usado para ampliar categorias, e temos,por exemplo,
“espectro de transtorno obsessivo-compulsivo”, “transtorno do espectro
da esquizofrenia” e “transtorno do espectro do autismo”. E há propostas
para a inclusão de distúrbios totalmente novos, como “transtorno
hipersexual”, “síndrome das pernas inquietas” e “compulsão alimentar”.
Até mesmo Allen Frances, presidente da força-tarefa do DSM-IV, escreveu
que a próxima edição do Manual será uma “mina de ouro para a indústria
farmacêutica”.
A indústria farmacêutica influencia psiquiatras a receitar drogas
psicoativas até mesmo a pacientes para os quais os medicamentos não
foram considerados seguros e eficazes. O que deveria preocupar
enormemente é o aumento espantoso do diagnóstico e tratamento de doenças
mentais em crianças, algumas com apenas 2 anos de idade. Essas crianças
são tratadas muitas vezes com medicamentos que nunca foram aprovados
pela FDA para uso nessa faixa etária, e têm efeitos colaterais graves. A
prevalência de “transtorno bipolar juvenil” aumentou quarenta vezes
entre 1993 e 2004, e a de “autismo” aumentou de 1 em 500 crianças para 1
em 90 ao longo da mesma década. Dez por cento dos meninos de 10 anos de
idade tomam agora estimulantes diários para o transtorno de déficit de
atenção/hiperatividade.
Seria muito difícil achar uma criança de 2 anos que não seja às vezes
irritante, um menino de 5ª série que não seja ocasionalmente desatento,
ou uma menina no ensino médio que não seja ansiosa. Rotular essas
crianças como tendo um transtorno mental e tratá-las com medicamentos
depende muito de quem elas são e das pressões que seus pais enfrentam.
Como as famílias de baixa renda estão passando por dificuldades
econômicas crescentes, muitas descobriram que o pedido de renda de
seguridade suplementar com base na invalidez mental é a única maneira de
sobreviver. Segundo um estudo da Universidade Rutgers, descobriu-se que
crianças de famílias de baixa renda têm quatro vezes mais probabilidade
de receber medicamentos antipsicóticos do que crianças com plano de
saúde privado.
Os livros de Irving Kirsch, Robert Whitaker e Daniel Carlat são
acusações enérgicas ao modo como a psiquiatria é praticada hoje em dia.
Eles documentam o “frenesi” do diagnóstico, o uso excessivo de
medicamentos com efeitos colaterais devastadores e os conflitos de
interesse generalizados. Os críticos podem argumentar, como Nancy
Andreasen o faz em seu artigo sobre a perda de tecido cerebral no
tratamento antipsicótico de longo prazo, que os efeitos colaterais são o
preço que se deve pagar para aliviar o sofrimento causado pela doença
mental. Se soubéssemos que os benefícios das drogas psicoativas superam
seus danos, isso seria um argumento forte, uma vez que não há dúvida de
que muitas pessoas sofrem gravemente com doenças mentais. Mas como
Kirsch, Whitaker e Carlat argumentam, essa expectativa pode estar
errada.
No
mínimo, precisamos parar de pensar que as drogas psicoativas são o
melhor e, muitas vezes, o único tratamento para as doenças mentais.
Tanto a psicoterapia como os exercícios físicos têm se mostrado tão
eficazes quanto os medicamentos para a depressão, e seus efeitos são
mais duradouros. Mas, infelizmente, não existe indústria que promova
essas alternativas. Mais pesquisas são necessárias para estudar
alternativas às drogas psicoativas.
Em particular, precisamos repensar o tratamento de crianças. Nesse
ponto, o problema é muitas vezes uma família perturbada em
circunstâncias conturbadas. Tratamentos voltados para essas condições
ambientais – como auxílio individual para pais ou centros pós-escola
para as crianças – devem ser estudados e comparados com o tratamento
farmacológico.
No longo prazo, essas alternativas seriam provavelmente mais baratas.
Nossa confiança nas drogas psicoativas, receitadas para todos os
descontentes com a vida, tende a excluir as outras opções. Em vista dos
riscos, e da eficácia questionável dos medicamentos em longo prazo,
precisamos fazer melhor do que isso. Acima de tudo, devemos lembrar o
consagrado ditado médico: em primeiro lugar, não causar dano (primum non nocere).
Fonte: Revista Piauí
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